Uma pauta mexeu com a redação do jornal “O Globo” em 1935. Era a história de um jovem humilde, sem estudo, que dizia falar com os mortos, na pequena Pedro Leopoldo, a 40 quilômetros de Belo Horizonte. O mineiro que cuidava ainda dos irmãos e trabalha numa vendinha ia muito mais além: garantia que psicografava textos do renomado jornalista Humberto de Campos, que morrera pouco tempo antes. Quem recebeu a tarefa de contar tudo isso foi um dos principais jornalistas da equipe. O sucesso seria grande e se tornaria a primeira grande reportagem sobre Chico Xavier, cujo aniversário de morte completou ontem 20 anos.
— Um repórter de “O Globo, Clementino de Alencar, foi até Pedro Leopoldo para investigar aquele matuto. Ele chamava (o Chico), no início da reportagem, de o matuto bisonho — relata o jornalista e biógrafo do médium, Marcel Souto Maior, autor de “As vidas de Chico Xavier”.
A reportagem se transformou em relíquia. A partir de 30 de abril daquele ano, detalha os passos iniciais do médium que alcançaria grande projeção no Brasil e em vários países. Morto aos 92 anos, deixou como legado uma vasta obra de psicografias, com 439 lançadas ao longo da vida e outras 98 póstumas. Quem poderia imaginar que o “matuto bisonho” retratado nas primeiras matérias se tornaria admirado por milhares, inclusive de outros credos, atrairia artistas e políticos e seria indicado ao prêmio Nobel da Paz?
É justamente esta série de reportagem que está na versão atualizada e ampliada do best-seller “As vidas de Chico Xavier”, obra que já vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares e serviu de base para o longa “Chico Xavier”, de 2010.
— Eu sempre sofria por não ter esse relato na biografia. Isso eu descobri depois — diz o escritor, que pretende buscar mais informações sobre Clementino e os impactos daquela reportagem em sua carreira e vida pessoal: — Ele (Clementino) tem um texto excelente. Toda a série de reportagens do Globo, que bateu recorde, foi sucesso e vivia na capa do jornal, se estendeu até porque o público queria mais. Tinha um clima de diário, testemunhal, e é muito viva. É muito moderna até hoje.
O jornalista havia saído do Rio de Janeiro, então capital federal, para encontrar Chico em Pedro Leopoldo.
— Então, ele chega absolutamente descrente, desconfiado. Vai para passar alguns dias. Mas fica um mês, submetendo Chico a todo tipo de prova que você possa imaginar. Perguntas absolutamente elaboradas, de surpresa. Perguntas feitas por médicos, por juristas, e lá ia o menino de vinte e poucos anos, matuto, bisonho, escrevendo respostas em velocidade, atribuindo a vários espíritos. O repórter se referia ao Emmanuel, o guia espiritual, sempre com ironia e entre aspas: “o guia espiritual”.
O biógrafo acredita que Clementino desembarcou na cidade natal de Chico cheio de dúvidas e com muitas convicções sobre as possibilidades de fraudes.
— O jornalista queria entender como aquele menino, filho de pais analfabetos, estava escrevendo textos assinados por Humberto de Campos. Então, era quase assim: “Vem cá, quem é você para estar escrevendo textos atribuídos a Humberto de Campos?” — observa Marcel.
Ao longo de um mês, Clementino de Alencar passa a retratar Chico de forma mais positiva, abandonando termos nada lisonjeiros.
— Ele (Clementino) sai de lá falando assim: “Nosso amigo espiritual Emmanuel”, sem aspas nem nada e com maiúsculas. Então, na verdade, é muito bacana essa reportagem, porque ela mostra o Chico jovem sendo posto à prova e mostra um processo de transformação grande desse repórter.
A série de reportagens “Mensagens de além-túmulo” começa em 30 de abril de 1935, descrevendo a vida do “modesto caixeiro” que psicografa as crônicas póstumas de Humberto de Campos. Na sequência, a primeira página de 1 de maio, um perfil mais detalhado: “Frente a frente com Francisco Candido Xavier, o homem que affirma receber as chronicas de Humberto de Campos.” No subtítulo, o prenúncio do que vinha nas próximas linhas: “História da meia noite – plágios de fantasmas. Esse Xico Xavier é um caso bem interessante, o homem confidente da morte”.
O repórter se refere à primeira imagem capturada do médium: “Francisco Candido Xavier na primeira photographia que delle apanhou a objectiva do Globo.” Na foto, Chico está com 24 anos. . A descrição de Chico, em uma de suas primeiras aparições, mostra o que seria uma de suas marcas, a simplicidade.
“Não traz chapéo nem gravata e todo o seu traje é um attestado de pobreza. É moreno, de um moreno carregado e tem cabellos muito negros. Este é de estranha humildade e doçura”.
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